quarta-feira, 18 de novembro de 2009


Não faz nem vinte minutos que você me deixou aqui no café, que recusei o seu pedido,
dizendo que jamais escreveria para você a história de minha vida mortal, como me tornei uma vampira — como só encontrei Marius anos depois de ele ter perdido a vida humana. Agora, aqui estou eu com seu caderno aberto, usando uma das canetas de ponta
fina e tinta indelével que você me deixou, encantada com a pressão sensual da tinta negra no papel caro, branco e imaculado.
Naturalmente, David, você me deixaria uma coisa sofisticada, uma página
convidativa. Este caderno de capa de verniz escuro, não é?, lavrado com um desenho de
rosas exuberantes, sem espinhos mas com uma bela folhagem, um desenho que só em
última análise significa Desígnio porém revela uma autoridade. Os escritos contidos nessa bela e pesada encadernação contarão, diz esta capa.
As páginas grossas têm linhas azul-claras — você é prático, pensa em tudo, e
deve saber que nunca pego da pena para escrever coisa alguma.
Até o barulho da caneta tem seu encanto, o ranger agudo que lembra bastante
aquele das melhores penas da Roma antiga quando eu as usava nos pergaminhos para
escrever cartas a meu pai, quando eu registrava num diário os meus lamentos... ah, aquele barulho. Só o que está faltando aqui é o cheiro da tinta, mas temos a boa caneta de plástico que durará muitos volumes, deixando uma marca tão fina e profunda quanto eu quiser fazer.
Estou pensando em seu pedido para escrever. Você vê que conseguirá algo de
mim. Vejo-me cedendo, quase como uma de nossas vítimas humanas cede a nós, talvez
descobrindo enquanto a chuva continua caindo lá fora, enquanto continua o vozerio aqui no café, que acho que isso pode não ser a agonia que imaginei — recordar mais de dois mil anos — mas quase um prazer, como o próprio ato de beber sangue.
Agora quero alcançar uma vítima que, para mim, não é fácil de dominar: meu
passado. Talvez essa vítima fuja de mim numa velocidade equiparável à minha. Seja como for, agora estou procurando uma vítima que jamais enfrentei. E há aí a emoção da caçada, isso que o mundo moderno chama de investigação.

Autor(a): Anne Rice "Pandora"